Tabagismo em Portugal

A tendência atual do fenómeno relacionado com o consumo e exposição a produtos de tabaco, ainda continua a ser um desafio para a Saúde Pública. Segundo o último relatório publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em novembro de 2021 (https://www.who.int/publications/i/item/9789240039322), o consumo de tabaco continua a dizimar vidas humanas - mais de 8 milhões de pessoas em todo o mundo em 2019 - com tendência crescente, mas desigual em diferentes latitudes. 

Para controlar e mitigar esta verdadeira epidemia à escala global, a OMS adotou a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (WHO-FCTC) em 2003, reforçado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (meta 3.a da Organização das Nações Unidas, setembro 2015) e mais recentemente no Plano Europeu de Luta Contra o Cancro (2022), com um conjunto de estratégias de saúde publica (MPOWER) que envolve monitorização dos consumos, criação de ambientes livres do fumo de tabaco, acesso ao tratamento dos fumadores, informação e sensibilização da comunidade, controlo apertado sobre as atividades de promoção, marketing e publicidade da indústria e medidas de regulação, impostos e fiscalização. 

Em 2000, cerca de um terço (32,7%) da população mundial (ambos os sexos) e com 15 anos ou mais anos consumia alguma forma de tabaco. Em 2020, essa taxa caiu para valores de 22,3% e estima-se que, em 2025, assumindo a continuação da implementação das medidas do FCTC, o valor possa cair para 20,4%. 

Em Portugal, segundo Inquérito Nacional de Saúde em 2019, 17% da população com 15 ou mais anos era consumidora de produtos de tabaco, incluindo tabaco aquecido. 

De acordo com estimativas de 2019, o tabaco foi considerado o primeiro fator de risco de morte prematura e de anos perdidos de vida saudável nos homens, e 7º e 4º lugar, respetivamente, nas mulheres.

A redução do consumo de tabaco e da exposição ambiental é essencial para melhorar o estado da saúde das populações, mas para isso ser alcançável é necessário manter um elevado grau de prontidão no controlo deste problema de Saúde Pública a nível nacional e global. 

Para melhor compreender e analisar este fenómeno complexo que envolve diversos fatores interrelacionados, iremos fazer uma abordagem em três níveis. 

Num primeiro nível iremos incluir três fatores interdependentes: o produto em si, a indústria que o produz e distribui, e as pessoas. 

Nos últimos anos os produtos de tabaco evoluíram dos cigarros tradicionais para o tabaco de enrolar, tabaco aquecido, tabaco sem combustão (várias versões), cigarros eletrónicos (que já vão na 4ª geração), até aos dispositivos descartáveis de e-cigarros muito apelativos para as novas gerações de jovens adolescentes, entre outros produtos. 

Hoje, a disponibilidade em escolher diferentes formas de obter nicotina é ilustrativo da forma como evolui o mercado do tabaco. 

A Indústria, verdadeiro vetor da doença, alegadamente continua a mentir, a manipular e a influenciar de forma persistente, arrogante e sem escrúpulos os poderes legislativo, executivo e judicial dos Estados, conforme a sua latitude e geografia, e numa perspetiva global. 

Portugal, não está imune a esta nefasta influência, ao vermos entidade públicas (vários setores do Estado) e parceiros sociais, de mãos dadas, passando para a população a imagem de um ?lobo com pele de cordeiro?, muito preocupados com a Saúde Pública e bem-estar dos seus consumidores.

A jusante temos as pessoas, os consumidores, as famílias, e a sociedade em geral. 

A comunidade científica aponta que a iniciação tabágica ocorre devido a uma interação entre o indivíduo e o meio, nomeadamente através de fatores pessoais e sociais.

No grupo dos fatores pessoais, são incluídos os sociodemográficos, os psicológicos (stresse, ansiedade, humor disfórico, consumo de outras substâncias psicoativas, entre outros aspetos relacionados com a saúde psicológica), os cognitivos e psicossociais (atitudes favoráveis ou desfavoráveis em relação aos efeitos do tabaco, normas subjetivas, exposição a modelos sociais e a publicidade, sobretudo a digital, indutora de comportamentos de imitação pró-tabaco) e outros aspetos relacionados com as comportamentos de saúde, como por exemplo, a inatividade física ou os hábitos alimentares desregulados. 

Quanto aos fatores sociais e culturais, relacionam-se com as influências do meio, tais como a aceitabilidade social do hábito de fumar (pais fumadores), a influência social normativa e informativa, a publicidade, a acessibilidade e a promoção do consumo veiculado pela Indústria e seus parceiros. 

Como todos sabemos, a nicotina é uma droga altamente aditiva que atua nos sistemas primitivos de recompensa cerebral (sistema límbico) cujos efeitos varia de pessoa para pessoa. Para alguns a nicotina funciona com estímulo, especialmente em situações de aborrecimento, e para outros atua como calmante em situações de exposição aos fatores de stresse psicossocial. Associado a este efeito neurofisiológico, o comportamento repetitivo de fumar nas mais diversas situações do dia-a-dia consolidam o hábito, sendo por isso difícil de quebrar a rotina, ou seja, deixar de consumir.

Os principais desafios para os próximos tempos, passam pela regulamentação mais apertada sobre os aromatizantes, ou mesmo a sua eliminação, pela regulamentação das novas formas de publicidade, promoção e patrocínio da indústria, em particular a publicidade digital e redes sociais, e pelo reforço do investimento em recursos humanos e capacitação do SNS, para consolidação de uma rede de apoio à cessação tabágica efetiva e sustentável, para além de uma aposta na promoção da saúde e saúde psicológica da população. 

Citando JeffreyWillett cardiologista da AmericanHeartAssociation, num artigo de opinião publicado em julho 2021, ?embora a maior parte da morbimortalidade relacionada ao tabaco seja atribuível a outros produtos químicos, a nicotina é a principal substância viciante nos produtos do tabaco, que mantém os indivíduos usando tabaco e continuando o risco de sofrer danos relacionados ao tabaco. Como tal, o conceito de dependência de nicotina e suas consequências, em termos de uso nocivo de produtos do tabaco, devem ser centrais para as abordagens regulatórias e políticas para reduzir o uso do tabaco.? (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34052093/#affiliation-1)

Um segundo nível de análise do problema envolve medidas de fiscalização do produto, medidas regulatória e de política de saúde dos Estados e o envolvimento das organizações da sociedade civil (científicas, profissionais e utentes). 

A nível da fiscalização, o cumprimento da aplicação da legislação em vigor está a cargo de várias entidades do Estado tais como a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, Direção-Geral do Consumidor, Entidade Reguladora para a Comunicação Social e Direção-Geral do Orçamento e, como se constata na perceção pública, para além da dispersão de responsabilidades e a falta de articulação, o fazer cumprir a lei fica aquém do esperado, por diversos motivos, alguns relacionados com a falta de recursos humanos para fiscalizar, pela falta de empenho na causa pública de defesa do consumidor, ou ainda, na falta de literacia e sensibilidade para este problema de saúde humana e ambiental que envolve a fileira económica do tabagismo. 

A nível da legislação, na atualidade impõe-se o reforço e o foco nas Linhas Diretrizes deAplicação (Artigo 5.3 da Convenção Quadro para o Controlo do Tabaco), nomeadamente o impedir o envolvimento da indústria em iniciativas de controlo do tabagismo e proibir as chamadas atividades ?socialmente responsáveis?, prevenir conflitos de interesse relacionados com o tabaco em todas as áreas da governação (interferir no desenvolvimento de políticas públicas a nível nacional e internacional), impedir que a indústria pressione os governos para a facilitação/promoção de produtos de tabaco ?alternativos? (especialmente, os dispositivos eletrónicos para fumar) e, por fim, rejeitar parcerias e acordos vinculativos ou não. 

Infelizmente constata-se, mais uma vez, na perceção pública, a falta de transparência do poder legislativo e executivo, nesta matéria. Vários países continuam a oferecer incentivos à indústria, e percecionam esta área de negócio com essencial à economia, e Portugal, alegadamente não foge à regra.

O combate ao tabagismo faz-se também com o apoio da sociedade civil, através das suas Associações, Sociedades Científicas ou Fundações, como é o caso da Fundação Portuguesa do Pulmão. Para isso é fundamental, entre outras medidas, e para além dos recursos humanos, capacidade financeira para desenvolver e implementar medidas preconizadas pela Convenção-Quadro, como campanhas públicas de sensibilização e capacitação em literacia na saúde, advertências gráficas de maior visibilidade, sobretudo nas redes sociais, construídas de uma forma inovadora, apelativa, persistente, com suporte financeiro robusto e sustentada no tempo. 

Em síntese, os principais desafios a este nível passam pela efetiva aplicação, pelo poder executivo, do artigo 5.3 da CQCT, por uma fiscalização mais apertada e abrangente dos atropelos á lei do tabaco, nomeadamente pela limitação do acesso aos produtos de tabaco, aos novos produtos com nicotina e aos cigarros eletrónicos. 

Será muito desafiante, no futuro próximo, se Portugal evoluísse para medidas concretas que reduzam a prevalência do consumo de tabaco, tais como o aumento da idade legal de venda para os 21 anos de idade, reduzir drasticamente o teor de nicotina nos produtos de tabaco, reduzir de uma forma significativa (até 90%) no número de lojas que podem vender produtos de tabaco e proibir a venda de tabaco para pessoas nascidas a partir de 2009, criando assim uma geração sem fumo. Estas medidas estão, neste momento, a serem discutidas na Nova Zelândia e que se forem implementando de forma eficaz, prevê-se que tenham um impacto profundo sobre o tabagismo.

A nível dos diversos parceiros sociais e entidades púbicas da Saúde, Educação, Ambiente, Segurança Social e Justiça, promover a cooperação intersectorial, implementar campanhas efetivas que consciencializem os cidadãos sobre malefícios do tabagismo e promover junto da população ações de literacia em saúde, em particular junto dos jovens e das comunidades mais vulneráveis. 

Citando, Michael R. Bloomberg (2021) ?À medida que as vendas de cigarros foram caindo, as empresas de tabaco comercializaram agressivamente novos produtos ? como cigarros eletrónicos e produtos de tabaco aquecido ? e pressionaram os governos para limitar sua regulamentação. Seu objetivo é simples: fisgar outra geração para a nicotina. Não podemos deixar isso acontecer.? (WHO reportonthe global tobaccoepidemic2021: addressingnewemergingproducts - Geneve: WorldHealthOrganization; 2021)

Por fim um terceiro nível de análise envolve o ambiente, e a propósito do dia mundial sem tabaco 2022, a European Network for Smoking andTobaccoPrevention ? ENSP (https://ensp.network) em parceria com AllianceContreleTabac, publicaram uma carta aberta no jornal Le Monde e fizeram uma apresentação pública em Bruxelas no dia 24 de Maio 2022 apontando para o desastre ambiental, da produção ao pós-consumo do tabaco. 

Segundo estas entidades, as consequências devastadoras do tabagismo na saúde pública são bem conhecidas; no entanto, as consequências ambientais desastrosas pelas quais a indústria do tabaco é responsável são menos conhecidas.

Ao longo de todo o seu ciclo de vida, os produtos do tabaco são responsáveis ​​pela poluição e degradação ambiental, como o desmatamento, o envenenamento da água, do ar e do solo com produtos químicos e contaminação por microplásticos. A cada ano, mais de 4,5 triliões de cigarros são descartados no meio ambiente. Quase todos têm um filtro de acetato de celulose acoplado, um aditivo plástico pouco degradável que pode poluir até 500 litros de água e que é o segundo plástico de uso único mais encontrado nas praias da União Europeia.

Em plena contradição com esses fatos, a indústria do tabaco multiplica as suas tentativas de se apresentar como uma indústria responsável e ecologicamente correta. Seja pela comunicação disponibilizada nos sitesoficiais das suas principais empresas, ou pela ampla promoção e publicidade das atividades de limpeza das praias dos seus resíduos realizada por voluntários, a indústria do tabaco desvia e manipula os fatos. Ela foge de sua responsabilidade ambiental ao mesmo tempo em que recupera a legitimidade junto ao poder público.

Em Portugal, são públicas as campanhas promovidas pela Tabaqueira; por exemplo: Capital Verde Europeia, Câmara de Lisboa, 2020; Dia Nacional Limpeza das Praias, Câmara de Sintra e de Oeiras (2020 e 2021); Programa Bravos Heróis (2020) (https://www.pmi.com/resources/docs/default-source/portugal-market/rs_tabaqueira-final.pdf - acedido em 24 maio 2022).

Ao criar uma aparência de respeitabilidade, estas ações põem em risco várias décadas de esforços da sociedade civil e dos governos para prevenir e denunciar as devastadoras consequências sanitárias, sociais, ambientais e económicas do consumo e da produção de tabaco.(https://ensp.network/open-letter-european-union-must-stop-tobacco-industrys-greenwashing)

O Serviço Nacional de Saúde continua a fazer um grande esforço no sentido de aumentar a acessibilidade dos utentes para a obtenção de ajuda profissional, mas ainda há um longo caminho a percorrer, nomeadamente ao nível da capacitação contínua dos profissionais de saúde, na estabilização das equipas de saúde intervenientes na cessação tabágica, no acesso às consultas, desejavelmente com cobertura a todo o território nacional e ilhas, e na melhoria das formas de gestão dos sistemas informáticos (Sclinico), entre outras medidas. 

Para uma parte importante da população portuguesa e, em particular para os fumadores, o consumo de tabaco não é percecionado como um grave fator de risco para a saúde. Estes factos confirmam que é imperativo continuar a investir em campanhas públicas inovadoras, em múltiplas plataformas (sobretudo digitais) na prevenção e controlo deste importante problema de saúde pública. Desta forma, esperamos continuar a contribuir para promover a informação e a reflexão atenta sobre esta ameaça à saúde pública e proteger a população, capacitando-a para fazer escolhas mais saudáveis.



Manuel Rosas

Psicólogo Clínico com especialização avançada em Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses. 

manuelalvesrosas@gmail.com


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